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‘Sala De Games’: Um conto sobre o (sub)mundo pós-apocalíptico

Nós já comentamos por aqui sobre como os jogos transmitem sensações de lugares e das pessoas que nele habitam. Caso não tenha lido, sugiro que corrija isso agora, é o assunto do momento, todo mundo que é alguém está falando sobre isso, você não quer ficar de fora, não é?

Mas eu deixei de fora um jogo em especial. Parte do motivo foi porque eu acabei me esquecendo dele, mas, principalmente, foi pelo fato de que, enquanto os outros jogos citados tratavam de sensações nostálgicas, calorosas e familiares, esse aqui transmite solidão, melancolia e desolação. Exatamente aquilo que as crianças maneiras gostam!

Lançado em 2010 – mas com uma versão atualizada e consideravelmente superior em 2014 – Metro 2033 é um jogo raro, não só pela sua produção, que colocou a empresa ucraniana 4A Games no mapa, mas também pela história a ser contada. Em vez de ser a adaptação de um filme ou animação, ele é a versão jogável de um livro.

E a obra de mesmo nome não foi só uma ideia distante e conceitual para a produção. O escritor russo Dmitry Glukhovsky trabalhou intimamente para que o texto original de seu livro fosse devidamente adaptado para uma forma de arte interativa.

O resultado desse esforço é uma obra que acaba por trazer o melhor de dois mundos diferentes. Ao mesmo tempo que carrega o poder da interatividade e imersão que apenas os jogos conseguem proporcionar, o ritmo da aventura possui um quê de “literário”, sendo cada fase quase um conto curto e a jornada, como um todo, uma narrativa épica.

O contexto da obra pode até ser considerado “comum”: Em consequência da 3ª guerra mundial, o mundo foi consumido pelo fogo nuclear e um dos últimos lugares razoavelmente seguros é o sistema de metrôs de Moscou.

20 anos após a catástrofe, a humanidade está tentando seguir em frente.

As diferentes estações do complexo metroviário tornaram-se comunidades e Estados, com suas ideologias e costumes, usando balas de rifle confeccionadas antes do eterno inverno nuclear como moeda na tentativa de manter uma economia.

O resultado desse cenário é um delicado equilíbrio entre regiões. Nenhuma delas consegue ser plenamente autossuficiente a ponto de se fechar para outras, ao mesmo tempo que pouquíssimas estão dispostas a depender e abraçar a cultura alheia.

Imagine dessa forma: se já está complicado interagir socialmente nos dias de hoje, imagine se tudo o que sobrou dos neoliberalistas, dos comunistas e dos nazistas estivesse enclausurado em entre quatro paredes, a poucos metros de distância uns dos outros.

E essa estrutura é usada como plano de fundo para a grande jornada da obra.

Existe um mito quase desconhecido sendo partilhado pelo metrô, considerado uma lenda urbana pelas estações em que tal história já passou: “os sombrios”. Estes seres humanoides supostamente vagam pelo gigantesco complexo, destruindo as mentes daqueles que, por azar ou orgulho, acabaram estando no lugar errado na hora errada.

Mas para Exibition, a estação em que nosso protagonista, o jovem Artyom, mora, eles são uma ameaça real. A presença desses seres e seus contínuos ataques, junto com as constantes investidas da violenta fauna mutante, pode significar o fim do lar do protagonista.

Então, quando uma figura reverenciada desaparece após partir para trazer ajuda, cabe a Artyom seguir caminho pelos intermináveis trilhos até conseguir chegar em Polis, a capital do gigantesco metrô de Moscou, e tentar trazer algum suporte antes que seja tarde demais.

O nosso protagonista viaja pelos cantos mais longínquos da estrutura que um dia foi o transporte público Russo, deparando-se com diversas culturas, visões de mundo, perigos, pessoas e, mais importante, fica profundamente íntimo do maior personagem de boa parte da franquia: o próprio metrô.

O último refúgio

Como fazer para que intermináveis corredores cinzas tenham personalidade?

Simples, você os preenche com vida. Pode não ser “vida” no sentido comumente entendido, com pessoas vivendo suas rotinas, mas ainda assim é um tipo de “vida”. Existem estações que são verdadeiras cidades, com comércio, uma convivência mundana e até mesmo um cenário artístico, ao mesmo tempo, temos outras que são plenamente habitadas, apenas não o são por humanos e há até mesmo aquelas onde coisas a princípio incompreensíveis acontecem, nas quais a linha que separa um evento natural de um sobrenatural é tão tênue que pode muito bem não existir.

São nessas últimas que o metrô consegue existir em sua forma mais bruta, na qual a realidade está livre para funcionar por meio de regras com as quais você pode não estar tão familiarizada.

Nelas, fragmentos do passado tendem a se repetir ou mesmo se manter ao longo do tempo, por meio de vultos que ameaçam consumir qualquer coisa que se permita ser tragada. E para demonstrar como tudo faz parte desse grande organismo que é o sistema de metrôs, esses vultos (ou melhor, fantasmas) não são só pessoas, mas também são os animais e até mesmo os trens que trafegavam por esses túneis.

Aos olhos do metrô, tudo faz parte de uma só estrutura. Como eu disse, do mesmo organismo.

E o trajeto por esse sombrio e pulsante organismo é facilitado pelo fato dele ser incrivelmente belo.

A composição de cada ambiente de cada estação é extremamente minuciosa, com um nível de detalhe perfeito para que a imaginação de quem jogue consiga preencher as lacunas e questionamentos.

Nos lugares em que as pessoas vivem, as questões normalmente ignoradas por outras obras, como “onde essas pessoas se divertem?”, “o que elas comem?” e “como vão no banheiro?” são elegantemente respondidas por meio da construção do cenário.

Já nos ambientes abandonados ou esquecidos pelas comunidades mais bem estruturadas, é possível entender o passado por meio da decadência de cada objeto, pelo posicionamento de cada estrutura e por quem ou o que escolheu habitar lá.

A melhor forma para definir a beleza do jogo é “melancólica”. Você testemunha paisagens que já sofreram tanto pela ação humana e agora, quase que como uma vingança natural, não mais se curvam à humanidade. O jogo nos apresenta paisagens que possuem tanto grandiosidade quanto indiferença perante às pessoas que ainda tentam habitá-las.

Mas por que esse submundo hostil é considerado um refúgio?

Pois na superfície, até o ar é letal.

Ainda que a escuridão quase eterna do metrô esconda mistérios e perigos, o mundo da superfície não se dá nem ao trabalho de esconder seus aspectos mais negativos. Os mais perigosos animais do novo mundo transitam embaixo do sol como as novas espécies dominantes, o horizonte branco do inverno radioativo se estende quase que eternamente e dos poucos humanos que tentam desbravar e reclamar a superfície, a grande maioria é formada por nazistas.

Ainda que, pela descrição, a ambientação do jogo pareça, em sua totalidade, como uma série criativa de maneiras de dar fim na vida do protagonista, o jogo brilha ao criar, no meio de tantos lugares figurativamente e literalmente tóxicos, ambientes seguros.

Caso você se permita tentar compreender o mundo, começará a entender seus sinais. Assim como alguém experiente em trilhas e explorações nas selvas consegue perceber oportunidades e abrigos nos ambientes mais inóspitos e afastados, após algumas horas de jogo, estudando as regras do mundo do metrô, você consegue, quase que instintivamente, entender onde encontrar recursos e os melhores caminhos por meio dos túneis sem fim.

Você passa a se relacionar com o Metrô não como uma ameaça, mas sim como um organismo, o qual não é, essencialmente, mau, apenas vivo.

O caminho para compreensão

Uma qualidade surpreendente da trama do jogo é que sua aventura não é sobre destruição. Pelo menos, não deveria ser. O caminho de Artyom o levará a encontrar diversas pessoas vivenciando realidades diferentes.

Que tipo de vida as pessoas nômades, aquelas que não têm uma estação específica para chamar de lar, levam? Como é a rotina das estações menores, sem muita relevância para o futuro do complexo, e das maiores, que são os polos do mercado e da política?

Contudo, talvez ainda mais relevante para o tema da obra, seja o tempo dedicado para explorar o que levaria alguém a se filiar a alguma ideologia.

Em determinado momento, Artyom tem de atravessar um campo de batalha entre comunistas e nazistas, porém, mais do que uma guerra, esse momento serve como oportunidade de testemunhar o que pensam as pessoas no conflito.

Não se enganem, o jogo, exatamente como deve ser, é amplamente crítico do nazismo e de seus valores. Mas, ele aproveita os momentos de calma e solidão dos soldados para fazer com que vejamos o malabarismo lógico que muitos fazem para justificar suas escolhas.

Essa necessidade de entender o mundo não se limita unicamente às pessoas que nele habitam.

Após certo tempo de jogo, a definição de seres e eventos muda. Você percebe que os monstros e criaturas não são nada além de animais. Claro, animais absurdamente ferozes e com dentes do tamanho de uma cabeça humana, mas ainda assim, são apenas animais.

E o mesmo ocorre com os fenômenos bizarros e inexplicáveis. Nunca deixará de ser esquisito o fato de espectros de eventos e pessoas povoarem os tuneis ou que esferas de energia maciça trafegarem casualmente em locais abandonados, causando uma destruição controlada, mas a sua relação com eles passa a ser a mesma que com fogo, uma tempestade ou o cair da noite. Apenas eventos naturais.

Por fim, a compreensão consegue ser, ao mesmo tempo, o tema e principal mecânica do jogo.

Assim como a jornada permite que Artyom compreenda melhor a vida no metrô, ela também faz com que ele entenda melhor a ameaça do jogo. Qual é a motivação dos sombrios? O que eles são? E, mais importante, esses ataques (que de fato estão fazendo estragos) são mesmo “ataques”?

Tal evolução pessoal se traduz em uma mecânica de pontuação invisível. Cada vez que você se permite observar e aprender mais sobre o mundo, você pontua. Escute uma conversa, dê um dinheiro a alguém, não ataque um grupo de animais apenas por atacar e internalize os indicadores naturais da presença de recursos escondidos. Tudo isso vai permitir que Artyom compreenda mais o mundo e, quem sabe, encontre um outro final para sua jornada. Mas independentemente de como ela acabe, é uma aventura que vale a pena ser experimentada… ainda que ela seja um pouco truncada.

Problemas nos trilhos

Um detalhe que é bom lembrar sobre o jogo é que ele é o primeiro de uma companhia. Ainda que a 4A seja composta por desenvolvedores veteranos, o progresso de criação da obra foi bem complicado, seja por questões estruturais ou pelo tipo de jogo sendo feito. Ainda que a ambição tenha sido louvável e seja consideravelmente responsável por grande parte do charme do jogo, ela também é a razão de muitos de seus defeitos.

Na sua primeira versão, em 2010, diversas mecânicas não funcionavam de maneira ideal, principalmente a de furtividade, seja no sentido das nuances de o quanto um barulho se propaga, os limites do campo dos outros personagens e se determinada fonte de luz revela ou não sua presença. Por inúmeras vezes, você será vista em situações nas quais jura que não deveria ter sido e os adversários, partilhando praticamente uma mente coletiva, acabam por coletivamente saber onde você está.

Como dito anteriormente, parte do charme está exatamente nessas limitações. Por mais que seja um jogo de tiro, os movimentos são mais lentos, mais pesados e carregam uma maior relevância. A questão está no quanto uma limitação, fruto do acaso ou intencional, colabora com a atmosfera e imersão do jogo ou apenas frustra a partida, com situações que são mecanicamente injustas.

Felizmente, praticamente todas as reclamações sobre como o jogo funciona foram devidamente corrigidas no seu relançamento em 2014, com o subtítulo de Redux. A furtividade e o combate são agora meios de jogar igualmente válidos, com vantagens e desvantagens para cada situação.

Porém, um problema ainda maior continua presente no jogo. Diversas decisões de design nas fases e em encontros com os adversários são muito infelizes e denunciam as limitações e inexperiência quanto a esse tipo de jogo.

Nos momentos em que o jogo claramente indica uma preferência para uma resposta furtiva, ele não apresenta muita liberdade quanto ao que pode ser feito. Você deve seguir o exato percurso imaginado, caso contrário, será descoberta.

Na reta final, o combate cresce até um patamar que claramente dá para perceber que ele não foi feito para isso, com inimigos demais que sempre dão preferência para atacar você sobre seus aliados. Na verdade, a situação fica tão crítica, que, na fase final, a melhor estratégia para sobreviver e manter o mínimo de recursos é dar voltas pelo cenário enquanto seus parceiros finalizam as criaturas que, obviamente, atacam unicamente você.

O resultado disso, junto com algumas fases que apresentam um percurso inconvenientemente confuso, é uma experiência que se perde nas horas finais, sendo desnecessariamente frustrante.

Mas o pacote completo, com sua atmosfera, eventos, construção de mundo e jogabilidade (principalmente na versão redux), é uma experiência como poucas, merecendo ser jogado pelo menos uma vez, para que você tenha uma chance de se perder pelos sombrios, infindáveis e estranhamente acolhedores túneis do Metrô de Moscou.

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